15: Borboleta

ESCRITO POR DANIEL MANNING & MISCHA STANTON
PRODUZIDO POR MISCHA STANTON
TRADUZIDO POR JÚLIA OLIVEIRA
[EN]

[gravador de fita liga]

SALLY GRISSOM (SG): Diário de Sally Grissom. 18 de novembro de 1949. Primeira gravação no novo gravador. Não falo com ninguém fora esse diário há… há um bom tempo. Hm... Ainda não consigo me forçar a, hm, sair de casa. Não... Não quero estragar nada. De novo.

Às vezes eu acho que o universo tem algo contra mim, sabe? É como se o passado ‘tivesse se vingando, com raiva de todas as coisas que eu fiz desde que deixei meu lugar certo no tempo. Fico pensando em tudo que deu errado, e como tudo acaba se voltando contra mim. Aí, me lembro que o passado não pode se vingar, e que a grande merda em chamas da vida e a tragédia da física só meio que são uma bosta mesmo! Pelo menos o universo não ‘tá nem aí pra mim!

Deus do céu, até quando eu acho que finalmente posso fazer as coisas pelas razões certas, vai tudo à merda! Eu tento fazer um pouco de bem, trazer algo de bom a um mundo com tanto de ruim, e eu...

Não foi só o Sharma. Quer dizer, quem sabe onde Partridge, ou Barlowe, ou Wyatt, ou Whickman, ou qualquer um deles estaria, o quão melhor poderiam estar, sem mim. Uou, eu sou depressiva assim em público? Cara.

Roberts veio me ver algumas vezes. Apesar do que eu disse sobre ela, apesar de quaisquer planos de Esther que ela possa ter, é bom quando vem ver como eu ‘tou. Mas ultimamente ela tem me pressionado pra ir a esse médico, um psicólogo de quem ela tem o contato. E, eu sei, sei que saúde mental é coisa séria, sei que procurar ajuda não é vergonha nenhuma, e é, OK, talvez eu esteja meio... desgastada nas pontas. Mas não posso, simplesmente não posso assumir a responsabilidade de tocar a vida de mais uma pessoa. Não posso ficar jogando pedras no laguinho quando as ondulações se transformam em tsunamis! Tenho que fazer tudo que puder, daqui pra frente, pra conter meu impacto. Pra minimizar o dano. Pra não trazer ninguém novo pra minha vida.

[rádio sintonizando]

MAGGIE ELBOURNE (ME): Aqui é Maggie Elbourne, sou assistente de pesquisa do Dr. Aldous Carling, e estas são as minhas anotações sobre a nova análise comportamental comissionada pela Agência de Desenvolvimento de Recursos Anômalos dos Estados Unidos. Fui instruída a gravar observações detalhadas sobre o estudo, assim como meus pensamentos sobre o processo. Então, aqui está a Fita 1: Descrição e Plano de Fundo.

A ADRA nos contratou para desenvolver e realizar uma série de testes para examinar os efeitos de um novo... equipamento, na psique humana. Essa máquina, de codinome Timepiece, eu... até agora hesito em acreditar totalmente nos documentos, mas suponho que é necessário se queremos chegar a algum lugar. Mandaram pedaços de uma máquina que, quando ativada, transportará objetos de volta no tempo. Expressei minha descrença de que tal coisa seja possível ao Dr. Carling. Prefiro ser enfiada de novo nos Relatórios e Arquivos do que desperdiçar meu tempo sendo feita de boba. No entanto, o Dr. Carling me garante que a máquina faz mesmo o que diz na caixa. E, além disso, não posso desenvolver um experimento com ela direito sem primeiro aceitar a premissa como verdade. Então é o que farei.

Quero deixar claro de novo que este estudo foi comissionado por uma agência governamental, para fins de examinar a eficácia desta máquina para uso em guerra. Eu gostaria... que não fosse esse o caso. Mas a ciência são as velas, não o leme, e somente posso pesquisar aquilo que me foi requerido. Pelo menos... por hora.

Os documentos da agência se referem a, e aqui os cito, “efeitos adversos no estado mental do operador frente a uso prolongado ou intenso”. E é aqui que começo. Preciso observar esses efeitos adversos se tenho que apresentar um relatório detalhado.

[rádio sintonizando; escrevendo; levanta, abre a porta, “Primavera”]

SG: Não, eu devia ir–

DR. FITZGERALD (DR.F): Senhorita Sally Grissom?

SG: Doutora– aah, merda…

DR.F: É claro, perdoe-me, Dra. Grissom. Sou o Dr. Fitzgerald. Entre.

SG: Na verdade, Dr. Fitzgerald, eu ‘tava justamente pensando que… eu não preciso me consultar de verdade.

DR.F: Sally, normalmente não temos consciência da ajuda que precisamos até ela nos ser oferecida...

SG: Não, não. Eu já disse demais. Eu não devia nem ‘tar aqui. Tenho certeza–

DR.F: Sally. Você já está no meu consultório. Tem uma consulta marcada. Não tenho nada senão tempo para você.

[Sally entra no consultório]

SG: Você não faz ideia do quão certo ‘tá, Doutor.

DR.F: Como assim?

SG: … Não quero falar sobre isso. Desculpa ter tocado no assunto.

DR.F: OK. Sem problemas. Podemos falar do que quer que você queira. Tudo bem eu lhe chamar de Sally?

SG: Claro, eu acho.

DR.F: Sally, o que lhe trouxe aqui hoje?

SG: Bom, hm… Eu…

DR.F:  Tome um tempo para compor seus pensamentos.

SG: … ‘Tou com medo de sair de casa ultimamente. Ou melhor, minha casa, o quintal e a garagem, até a caixa de correio...

DR.F: E ainda assim, aqui está você.

SG: Eu sei. Eu sei! Aqui estou eu. Esse é o primeiro dia em… um tempo. Dias.

DR.F: Quantos?

SG: Não sei ao certo…

DR.F: Sally. Aprecio que você tenha seus próprios segredos. Coisas que não quer dividir comigo. Por que o faria? Acabamos de nos conhecer. Mas, se vai mentir para mim, então isto aqui não vai funcionar. Lembre-se, tudo que acontece aqui fica entre nós.

SG: … Três semanas.

DR.F: Isso é… isso é bastante tempo. O que lhe fez mudar de ideia hoje?

SG: Roberts ameaçou parar de me trazer comida.

DR.F: Lembro de conversar com a Srta. Roberts. Ela é... bem meticulosa. Acha que ela o faria?

SG: É. Acho sim. Roberts é um doce, mas ela... é implacável.

DR.F: Acredito em você.

SG: E, pra falar a verdade, eu posso ser um pouco teimosa.

DR.F: Você não seria a primeira pessoa a hesitar procurar psicoterapia.

SG: É, mas pelo menos admito que preciso de um pouco de ajuda. Então aqui estou. Mas queria não ‘tar.

DR.F: Por quê?

SG: Queria não ‘tar tomando o seu tempo. Deslocando o seu tempo.

DR.F: Isso se chama “agendar”.

SG: Não, não fui clara. O que você estaria fazendo agora, se eu não tivesse marcado minha consulta pra hoje?

DR.F: Bom, imagino que estaria trabalhando nas minhas anotações sobre os outros pacientes na minha escrivaninha.

SG: OK. Então você teria feito suas anotações e seu dia teria terminado uma hora mais cedo. Digamos, às seis em vez das sete.

DR.F: Tudo bem, Sally, eu tenho bastante tempo–

SG: Você sairia do trabalho às seis, chegaria em casa em torno das 6:20 e faria o seu jantar. O calor subindo do seu forno se mistura com o ar e cria uma bolha de temperatura. Um gavião voando sobre a sua casa passa pela bolha, sobe até o topo das árvores e de lá vê o jantar dele: um rato-do-campo. O gavião caça o rato, o rato morre. O gavião come o jantar dele, e você o seu. ‘Tá tudo bem. Mas: você ‘tá aqui comigo. Suas anotações vão demorar mais uma hora. Você não vai fazer o jantar até às 7:20. O gavião não passa pela bolha, o rato sobrevive pra correr pra dentro de uma casa, uma dona de casa de classe média usando xadrezinho pula na mesa, escorrega e quebra o pescoço. Bang, minha presença no seu consultório matou mais uma pessoa inocente!

DR.F: … Mais uma?

SG: Já tenho sangue o suficiente nas minhas mãos. O suficiente pra uma vida inteira. Não preciso de mais.

DR.F: … Quero voltar na coisa do sangue depois, mas primeiro, uma pergunta: E se eu, durante minha volta atrasada para casa, atropelar o mesmo rato com meu carro?

SG: Hã?

DR.F: Talvez, se eu fosse mais cedo para casa, um caminhão atravessasse o sinal vermelho e me acertasse no caminho. E se a barriga cheia do gavião devastar a população de ratos daqui? E se a dona de casa fosse terrível, e merecesse uma morte rápida?

SG: [risada] Ela teria que merecer mesmo.

DR.F: O que estou dizendo, Sally, é que tem muita coisa que está fora do seu controle aqui. Você não simplesmente apareceu no mundo hoje, do nada. Esteve afetando as pessoas ao seu redor sua vida inteira. Não pode ter controle sobre tudo, e não deveria se deixar preocupar sobre o que não pode controlar.

SG: Ha! Sabe o que aconteceu com a última pessoa que disse isso pra mim? Ele acabou preso em uma CELA pro resto da vida.

[rádio sintonizando]

ME: Maggie Elbourne, experimento #1. 4 de dezembro de 1949. Tenho aqui comigo minha primeira cobaia: Cronos. Diga oi, Cronos.

[camundongo na gaiola]

ME: Para começar, condicionei o comportamento de Cronos na última semana para apertar um botão quando ele tiver fome. Ao longo da semana, ele simplesmente recebeu a comida quando apertou o botão. Hoje, vou modificar o mecanismo. Em vez de liberá-la, o botão agora vai acionar um cronômetro, programado para uma hora. Assim que a contagem chegar a zero, a Timepiece vai ativar e emitir radiação de volta no tempo, se entendo bem, com uma assinatura radioativa única. Conectei um sensor ao dispensador de comida, e ela só será liberada quando o sensor receber a assinatura. O objetivo é criar uma versão dos eventos em que Cronos não é alimentado e continua com fome, e uma versão reescrita dos eventos em que, pelas estimativas da nossa pequena pioneira aqui, tudo se dará como sempre. Espero que isso seja suficiente para induzir os efeitos adversos da viagem no tempo, e que eu possa prosseguir a partir daí.

[camundongo na gaiola]

ME: Vamos lá, já tem quase uma hora. Esta coisa sequer está fun–

[Timepiece ativa; rádio sintonizando]

ME: Resultados do experimento: Depois de uma semana de atividade da Timepiece ativada pelo botão, Cronos continua o mesmo. O humor dele está estável; ele continua cheio de energia. O peso continua igual. Todos os dados indicam que Cronos está tão saudável quanto quando chegou. Cheguei à conclusão de que é necessário mais que uma simples mudança no ambiente temporal de um indivíduo para induzir malefícios. Agora, com o básico fora do caminho, vou precisar tentar uma técnica diferente.

[rádio sintonizando]

DR.F: Como foi sua semana, Sally?

SG: Foi OK. Acho.

DR.F: Você fez aquilo que conversamos sobre?

SG: Sim. Fiz.

DR.F: E?

SG: Meio que… deu errado.

DR.F: Como assim?

SG: Bom, eu ‘tava tentando sair mais e falar com mais gente, como você sugeriu. Só jogar conversa fora. Ouvir as pessoas. Aprender sobre a vida delas, observar que podem interagir comigo e não acabar... descarrilhadas. Mas fui fazer compras, e o caixa... Bom, ele costumava me ligar.

DR.F: Hm. E como foi a interação de vocês?

SG: Ele disse que me ligava, e que sentia falta de ouvir a minha voz.

DR.F: E como você se sente sobre isso? Encontrar um ex-namorado pode ser estressante.

SG: … Quê?

DR.F: Bom, você disse que ele era um dos seus pretendentes...

SG: Oh, ha, não, não, não. Esse tipo de coisa não é bem a minha.

DR.F: O que não é a sua, amor? Ou relacionamentos românticos?

SG: A coisa toda nunca foi a minha praia.

DR.F: Sally, todos nós merecemos–

SG: Vou ter que te parar aí mesmo, Doutor. Sou perfeitamente feliz sem alguém na minha vida. Não sou “incompleta” só porque não quero um homem me dizendo o que fazer. Ele não era um “pretendente”.

DR.F: Então o que você quis dizer?

SG: Até algumas semanas atrás eu tinha essa máquina, a Secretáriatron. Eu gravava mensagens nela pra quando não podia atender o telefone. E era a maior sensação na cidade. As pessoas ligavam só pra ouvir ela. Aparentemente, o caixa era uma dessas pessoas.

DR.F: OK. Então ele costumava ligar para a sua Secretáriamagi–

SG: Secretáriatron. Sim. Durante o coma, pelo jeito ele ligava bastante. Conheceu a esposa dela quando ouviu ela falando sobre o assunto por acaso. Enquanto eu ‘tava em coma, eles se casaram.

DR.F: ...Oh.

SG: Pois é. Acho que eu… apresentei eles, de certa forma. Nunca teriam se conhecido se eu não ‘tivesse aqui no...

DR.F: No passado?

SG: … Roberts te contou.

DR.F: Ela levou em consideração a última vez que você foi a um psicólogo que não sabia sobre sua, hm, “posição singular”, e como no fim ele quis lhe mandar para o hospício. Eu estava esperando você mesma me contar. Espero que não se importe.

SG: É o meu fardo. Estou aqui já faz seis anos. Já ‘tou bem acostumada. Como você se sente sobre isso?

DR.F: Vou admitir, pensei que ela estava louca, ou que você estava. Mas nossa amiga em comum tinha como comprovar sua história, então, ou é verdade, ou isto é um episódio de The Candid Microphone e, se for o caso, eu gostaria que o Sr. Funt se revelasse.

SG: Se isso é uma pegadinha elaborada, é novidade pra mim, e bem possivelmente a pior coisa que já fizeram comigo. Devo ser uma esquisita no meio dos seus pacientes, né?

DR.F: Na verdade, Sally, o que está passando me parece mais normal que imaginaria. Você foi exilada da sua terra natal–

SG: Ponto de Exilada–

DR.F: –E separada da sua cultura, dos seus velhos amigos e família. Sua língua é diferente, seus ideais e valores são estranhos para nós. Pode ter uma história mais complicada que um estrangeiro que cruze com você na rua, mas sua narrativa não é menos familiar.

SG: Então ‘tá dizendo que eu sou entediante?

DR.F: Não sei. Talvez você possa me contar a história de como veio parar no passado?

[rádio sintonizando]

ME: Maggie Elbourne, experimento #2, 3 de janeiro de 1950. Comigo hoje, tenho minha última cobaia: Hermes. Hermes foi treinado para completar este labirinto. No centro do labirinto, há um botão que ativa a Timepiece. A Timepiece está programada para mandar radiação para quinze minutos antes de o botão ser apertado. Assim que o sensor detectar isso, sincronizado, é claro, com a assinatura radioativa específica, ele abrirá a porta da gaiola e Hermes começará o percurso. Nos testes preparatórios, o tempo médio de Hermes nele foi dois minutos e sete segundos.

Este experimento vai acompanhar o tempo de Hermes para completar o labirinto quando exposto a pequenas flutuações na história pessoal, especificamente, ao tempo variável de abertura da porta do labirinto. O intervalo de transmissão fixo da Timepiece permitirá que eu grave o tempo gasto pela cobaia independentemente da iteração em que o teste está acontecendo, uma vez que eu mesma não serei capaz de distinguir entre as iterações. Esses experimentos ficaram complicados rapidinho, nossa. 

Iniciarei o ciclo manualmente às 16:30.

[fita acelera; som de cronômetro]

ME: OK, está quase na hora… 5… 4… 3… 2… 1…

[campainha]

ME: 16:30 em ponto. E lá vai ele!

[rádio sintonizando; campainha]

ME: Oh, e começou! Horário de finalização: 16:17:10. Isso dá dois minutos e dez segundos para a primeira volta.

[rádio sintonizando; campainha]

ME: Oh, e lá foi ele! Horário de finalização: 16:04:28. Isso faz desta a segunda volta. Média de dois minutos e catorze segundos.

[rádio sintonizando]

ME: –Terceira volta, média de dois minutos e 21 segundos–

[rádio sintonizando; distorção estática]

ME: –Quarta volta, eu acho? Média de... dois minutos e trinta segundos.

[rádio sintonizando; distorção estática]

ME: –seria a quinta volta… Ele… Hm. Hermes está trombando muito nas paredes. Ele...

[Hermes tromba nas paredes]

ME: Nossa, essa foi bem forte, eu... Oh, Hermes!

[rádio sintonizando]

ME: Esta é a quinta volta… Não, não pode ser a quinta, com só cinco minutos de acréscimo. Ele não pode ter solucionado o labirinto cinco vezes em menos de cinco minutos... Esta deve ser... Nossa senhora, Hermes!

[rádio sintonizando]

ME: Oh, e lá vai ele! Horário de finalização: 15:13:25. Isso faz dessa a... Hermes? Ele… Ele não está se mexendo.

[rádio sintonizando]

ME: Resultados do experimento: Pelos meus cálculos, Hermes foi capaz de completar o labirinto sete vezes antes de ficar incapacitado, com uma média de quatro minutos e três segundos. Mesmo essa média está bem além dos dados de controle, e tenho que assumir que o decaimento ficou pior com o tempo, ou melhor, com cada iteração do labirinto, até que Hermes ficou sobrecarregado. Bom, estou tentando achar resultados tangíveis dos efeitos adversos da Timepiece... acho que encontrar Hermes morto na linha de partida foi exatamente o que eu pedi.

[rádio sintonizando]

SG: –E ele olha pra mão dele, e ela ‘tá tipo, desaparecendo aos poucos. E ninguém entende o que ele ‘tá tocando, exceto o guitarrista, que liga pro primo Chuck dele, que é o Chuck Berry, e você–

DR.F: Sally, Sally, eu sei quão importantes filmes são para você, mas poderia responder minha pergunta?

SG: Que foi?

DR.F: Por que você acha que sua presença no passado tornou o mundo objetivamente pior?

SG: O que sequer é “pior’, hein? Veja bem, um otimista espera que esse seja o melhor de todos os mundos possíveis. Um pessimista sabe que é. E, por mais que eu tente pensar que minha máquina do tempo vai fazer do mundo um lugar melhor, eu sei que ela não trouxe nada além de dor pras pessoa. Incluindo eu! Especialmente eu!

DR.F: Você disse “sua” máquina do tempo. Ainda sente uma noção de propriedade pela Timepiece?

SG: É claro que sinto! Tudo isso aconteceu por minha causa. Eu construí a merda da coisa em 20█, e aí construí ela de novo em 1945. Eu me debrucei sobre mecânicas orbitacionais obscuras por hor– … Ai meu Deus!

DR.F: O quê?

SG: Quando eu ‘tava construindo a Timepiece, nunca fatorei na expansão do universo!

DR.F: Não sei o que você está dizendo... Cometeu um erro enquanto construía a Timepiece?

SG: Sim! É claro! Como eu não percebi isso? Como a Roberts não percebeu? Uou, não acredito que funcionou mesmo assim. Desculpa, me distraí. Onde eu ‘tava?

DR.F: Estava falando sobre sentir que a Timepiece é sua. Ela é um fardo para você?

SG: Tantas pessoas se machucaram por minha causa. Algumas morreram. Bill Donovan estaria vivo hoje se não fosse por mim. Então é, é um fardo.

DR.F: Pelo que você me disse, parece que o conflito entre Bill e Anthony não tinha nada a ver com você.  Eles trabalhavam juntos antes de vir para cá. Não é possível que eventos similares tivessem acontecido sem você aqui?

SG: Sim, mas eu piorei a situação. Minha presença pode não causar dano, mas certamente catalisa.

[rádio sintonizando]

ME: Maggie Elbourne. Experimento #3 com a Timepiece, 8 de fevereiro de 1950. Com provas definitivas de que viagem no tempo tem um efeito diferente de zero no comportamento de camundongos, estive tendo dificuldades de desenvolver um experimento que me permita explorar as causas e consequências (se é que podem ser chamadas assim) dos sintomas sem causar dano a um número assombroso de camundongos. Fico... desconfortável com a ideia de machucar um ser vivo, se isso pode ser evitado. Levei minhas aflições ao Dr. Carling, mas pareceu imperturbado. Ele me “aconselhou” a continuar com o trabalho. Ele me disse bem sucintamente que não vou chegar a lugar nenhum neste mundo se não estiver disposta a sujar um pouco minhas mãos. Pode acreditar, Dr. Carling, a ameaça velada não passou despercebida.

Não sei se ele espera que eu não fale sobre isso nas gravações. Mas não sou amedrontada tão facilmente. Então, qualquer que seja a autoridade para que isso é enviado: Se eu não continuar estes experimentos, minha carreira será arruinada. Não sei se tem alguém ouvindo que ligue para isso. Mas não vou abaixar a cabeça e deixar que me mandem abandonar o trabalho da minha vida. Então... espero que isso sirva de justificativa para o que estou prestes a fazer

Este experimento foi instituído em três fases, em três cobaias: Cloto, Láquesis e Átropos, as três Moiras, e mais três outros camundongos.  

Fase 1: Treinei cada um dos camundongos para receber comida depois de pressionar o botão.

Fase 2: Para cada cobaia, um parceiro foi introduzido em uma gaiola adjunta. O botão localizado na gaiola do parceiro o recompensará com comida, mas a cobaia receberá um pequeno choque elétrico.

E agora, na Fase 3, vou remover os parceiros e substituí-los por versões futuras das cobaias, mandadas de volta no tempo. Planejo observar o comportamento dessas novas cobaias, as “Segundas Moiras”, quando virem suas eus passadas receberem os choques que se lembram de receber.

[Timepiece acelerando; colocando camundongos na gaiola]

ME: OK, meninas, aqui vamos nós.

[Timepiece ativa; rádio sintonizando]

ME: Maggie Elbourne, experimento #3 com a Timepiece, 1º de fevereiro de 1950. Estou começando a Fase 2 hoje. Estou prestes a introduzir os parceiros nas gaiolas... O mecanismo de choque foi testado, e não gosto dele, mas–

Oh. Já… Já tem camundongos nas gaiolas. Esta é, suponho, a Fase 3.

[rádio sintonizando]

ME: Resultados da Fase 3. A Cobaia Cloto passou esta semana como passou a primeira: apertando o botão e recebendo comida e, portanto, dando choques na Cloto mais nova.  Ela parecia indiferente à dor da sua eu passada, mas se isso era inerente à personalidade de Cloto ou se foi induzido pelo deslocamento temporal, é difícil dizer.

A Cobaia Láquesis definitivamente reconheceu sua eu passada. Ela se recusou completamente a pressionar o botão, apesar da fome. Havia momentos em que olhava para fora da gaiola, como... como se estivesse pedindo ajuda. Contudo, teve sucesso em alterar a experiência dela: a Láquesis mais nova passou a nunca ter recebido nenhum choque. Eu me pergunto se, quando eu a mandar de volta no tempo desta vez, ainda vai saber que não deve apertar o botão. Pode muito bem ter salvado a si mesma.

Mas a Cobaia Átropos… fez jus ao nome dela. Acredito que também conseguiu reconhecer o efeito do botão nela mesma. Em vez de parar de apertá-lo, no entanto... Átropos começou a apertar o botão rapidamente, ignorando a comida que recebia a fim de pressioná-lo de novo e de novo e de novo. Tive que desconectar o mecanismo do botão da gaiola dela. Ela teria... Mas preciso manter a integridade do experimento, então não podia deixá-la chegar tão longe. Basta dizer que acho que Átropos continuará se lembrando dos efeitos do botão. Eu sei que eu vou.

[rádio sintonizando]

SG: ‘Brigada por aceitar me receber tão em cima da hora.

DR.F: Sem problemas, Sally. Está tudo bem?

SG: ‘Tá, só estou com… Anda difícil dormir.

DR.F: Há quanto tempo está com problemas para dormir?

SG: A última semana. Hm, duas semanas… Mês… O tempo inteiro que estive vindo aqui… Desde Sharma.

DR.F: Por que não disse nada antes? Você foi tão direta quanto à sua agorafobia!

SG: Pensei que pudesse lidar com isso sozinha. Noites insones não são novidade pra mim. Mas, em sete dias, dormi nove horas, e não posso continuar assim.

DR.F: O que está mantendo você acordada?

SG: O que você acha? Alguém já morreu na sua frente alguma vez?

DR.F: Não, e certamente não de um jeito tão violento quanto o Sr. Sharma–

SG: Dr. Sharma. Assisti ele ser brutalmente morto à queima-roupa e à sangue frio por um dos meus mais queridos amigos. Senti os últimos suspiros de vida deixarem o corpo dele sufocando.  

DR.F: Isso deve ser profundamente estressante. O que acontece quando você tenta dormir?

SG: Não sei, o que você acha que acontece? Eu não durmo. Eu só...Pode me receitar um Zolpidem, ou algo do tipo? Espera, acho que vocês não têm Zolpidem. Heh, têm metaqualona? Existe hoje em dia? Não dá pra me descolar uma meta?

DR.F: Não receito medicamentos, Sally. Tento lhe ajudar a entender por si própria por que está com dificuldade de dormir. Talvez sugerir algumas técnicas para você experimentar.

SG: Não, não quero me fazer dormir, preciso de algo que me desacorde, que eu não tenha escolha. Tipo, ‘cês têm NyQuil? NyQuil serviria.

DR.F: Quanto remédio para dormir tem no futuro?

SG: Muito. Se você fosse de onde eu sou, ia querer ‘tar dormindo também.

DR.F: Você está dizendo que não “quer” dormir, apesar de saber que precisa?

SG: Tipo, eu quero dormir. Sei lá. Mas a ideia de ‘tar dormindo... só não quero ir embora de novo.

DR.F: Como assim “ir embora”?

SG: Eu sei que é idiota, mas, desde que acordei do meu coma, sinto que vou perder as coisas.

DR.F: Não é idiota. É perfeitamente normal temer que um evento traumático se repita.

SG: Perdi tanta coisa no tempo que fiquei ausente. Toda vez que fecho meus olhos, me pergunto se vou acordar de novo.

DR.F: Entendo essa ansiedade. Um tema recorrente das nossas sessões é um sentimento de que você foi injustiçada pelo próprio tempo. Dormir deve dar a sensação de que está sendo roubada.

SG: OK, é loucura, eu ‘tou louca, eu sei, mas… ‘tou sempre com medo do que vai me passar desapercebido.

DR.F: De novo, Sally, apesar de a sua existência certamente ser atípica, suas esperanças e medos são divididos por várias outras pessoas. Você não está louca.

[rádio sintonizando; distorção estática; camundongo na gaiola]

ME: Aqui é Maggie Elbourne. Faz quatro meses desde que comecei esta linha de estudo para lá de apavorante. Nesse período, minha área de trabalho se transformou em uma pilha de camundongos enlouquecidos ou mortos pelo que fiz com eles. Tenho pedido repetidamente ao Dr. Carling que entregue o projeto a outro pesquisador. Ele recusou todas as vezes.

E ele sabe. Sabe que farei o que quer que mande porque não posso perder minha posição aqui. Porque, se eu recusar fazer o que ele me diz, vai sujar meu nome, e nunca mais poderei trabalhar em um laboratório de novo.

Então. Agora que sabe por que não posso parar com esses experimentos abomináveis, vamos ao número quatro. Hoje nós... Deus, hesito até em dar nomes, eu só...

Hoje, tenho duas cobaias: A Mãe e... e o Filho.

O plano é deixar que a mãe crie o filho em isolamento até que ele tenha cerca de um mês. Então, eu o mandarei de volta, para que o Filho maduro exista enquanto o imaturo é criado. Baseado na reação de Átropos à sua antiga eu, espero que, com os dois Filhos vivendo juntos na mesma gaiola, o mais velho faça tudo o que puder para proteger o mais novo. Espero.

Planejo mandar o Filho maduro para 3 de março de 1950, precisamente às 11 horas. 3, 2, 1, já.

O Filho não apareceu, o que faz desta a Iteração 1.

[rádio sintonizando]

ME: 3, 2, 1, já. E… aqui está ele. Parece bem calmo, por hora… O que…

[distorção estática; camundongos estressados]

ME: Não, não, não, para!

[rádio sintonizando]

SG: Só não consigo acreditar que ele… que ele não me contou!

DR.F: Que Whickman não lhe contou por que matou o Dr. Sharma?

SG: Ele veio com os… capangas dele, e olha, eu sei que ele era meio que um traidor ou algo do tipo, e eu sei que ele tinha tipo, outras coisas de espião pra fazer e tal, mas não sou qualquer uma! Sou eu, a Sally! A Sally que todo mundo ama porque ela ama ciência e fala estranho! Eu não devia ficar no escuro assim. Só... pensei que tinha controle sobre a minha vida. Por cerca de 45 segundos, eu tinha feito uma Coisa e tinha Dado Certo, e aí Nikhil Sharma tinha que cair aqui do futuro e trazer uma montanha de perguntas com ele. Perguntas que nunca vão ser respondidas. Perguntas que vão me incomodar pra sempre.  

DR.F: Perguntas nem sempre importam, Sally. A vida real não é uma novela de rádio. As coisas não são todas amarradinhas e fazem sentido! Eu entendo que passou por muita coisa nos últimos meses, mas esse tipo de obsessão não é saudável. E acho que você sabe disso.

SG: Você não entende nada do que ‘tou falando de verdade! Dediquei minha vida ao conhecimento, à Timepiece. Você não conseguiria nem começar a compreender a merda cosmicamente inescrutável com que tenho que viver todo santo dia!

DR.F: Você não precisa viver com isso, Sally! Não é mais uma parte daquilo. Não sei o quão clemente o Sr. Whickman é, mas parece que você feriu seriamente confiança dele. Já pensou no estresse que ele deve estar sentindo? Se seus amigos são quem dizem ser, então têm que tomar decisões incrivelmente estressantes, sem resposta certa, todo dia. E você para lá e para cá, dizendo que é injusto que não é mais parte do clube!

SG: Eu sei que deve ser difícil, mas eles precisam de mim. Eu sei disso. E eu preciso deles. Mas essa merda de um ano e meio de distância fica me atrapalhando. Não faz diferença com Partridge. Porra, ele sempre vai ‘tar a uma mensagem de voz de distância. Mas isso por causa de uma merda de acidente que até hoje não sei nada sobre. Quem sabe? Talvez tenha sido minha culpa! Talvez eu tenha sido gananciosa demais, ido longe demais, e paguei o preço! Sinceramente, isso meio que combina comigo sim. 

DR.F: Não vê o padrão? Não acho que tenha tido necessariamente algo a ver com o que lhe aconteceu, mas a sua compulsão por conhecimento lhe levou a caminhos perigosos. Eu sei o tipo de pessoa que você é, Sally, então sei que isso deve ser difícil de escutar, mas acho que pode ser a hora de mudar seu foco para algo mais simples. Já experimentou jardinagem?

[rádio sintonizando]

ME: Para quem quer que se importe, aqui é Maggie Elbourne. Ex-assistente de pesquisa do Dr. Aldous Carling. Sob a coerção dele, e contratada pela Agência de Desenvolvimento de Recursos Anômalos dos Estados Unidos,realizei recentemente uma série de experimentos tendo como objeto a viagem temporal e os efeitos dela no comportamento de vários camundongos. Os efeitos variaram de mínimos a intensos a... extremos. Pouquíssimas das cobaias sobreviveram.

Ao longo do processo, fiquei cada vez mais desconfortável com a quantidade de violência que os experimentos continham. Insatisfeito com os resultados desses experimentos e se recusando completamente a ouvir os conselhos da própria pesquisadora escolhida por ele para a tarefa, Dr. Aldous Carling–C-A-R-L-I-N-G– ameaçou minha carreira e minha vida na comunidade científica, caso eu não continuasse a seguir as ordens dele. Então, continuei, até que testemunhar alguns... eventos verdadeiramente horripilantes... Vou ficar enjoada só de me lembrar. Confusão. Comportamento violento. Suicídio. Sangue, muito sangue…

Então, Dr. Carling me trouxe um último experimento. Até aquele ponto, eu ao menos tivera a liberdade de desenvolver meus próprios experimentos. Para tentar minimizar os danos! Mas esse… Queriam que eu pegasse doze camundongos e criasse cópias temporais. Uma quantidade enorme delas. Cópias sobre cópias, todas vivendo juntas em uma colônia gigante. Incluíram um projeto da colônia nos materiais e era... era uma prisão. Uma prisão para os camundongos reverberarem de suas duplicatas, até que, sem sombra de dúvida, acabassem destruindo uns aos outros. Nenhuma colônia desenvolvida de tal forma poderia ser sustável.

Era demais para mim. Eu… Eu fugi. Não podia, em plena consciência, ficar lá e ser complacente a essa matança. E isso foi só nos camundongos! Imagine só se pudessem deixar pessoas operaram aquela coisa?!

[???]

ME: Deixei minhas anotações para trás, mas consegui trazer Pandora comigo. Diga oi, Pandora.

[camundongo na gaiola]

ME: Espero que, quando encontrarem isto, acreditaram em mim. Acreditar... [tosse]

[distorção estática]

ME: Espero que acreditem em mim. Quanto ao que está por vir... desde que possa deixar aquele mundo indiferente para trás, não ligo.

[rádio sintonizando]

DR.F: [na gravação] Já experimentou jardinagem?

SG: [na gravação] [suspiro] Capaz de você ‘tar certo. Talvez eu venha sendo dura demais comigo mesma. Talvez Sharma tenha sido um sinal de que não fui feita pra esse tipo de trabalho. Eu acho... Eu acho que vou tentar ter uma vida. Fora da ADRA. Fora dessa confusão.

[gravação para]

HC: Fico feliz que finalmente está lendo minha apostila, Esther. Tomou nota do capítulo sobre “desrespeitar a confidencialidade médico-paciente”?

ER: Não vou nem dignificar isso com uma resposta, Hank.

HC: [ri] Então, o que o psicólogo disse?

ER: Ela não está estável. Tudo pelo que passou está exercendo um efeito profundo no modo como interage com as pessoas. Mas, se podemos ou não atribuir isso aos efeitos da exposição a paradoxos—

HC: —Ou se ela é uma sociopata irresponsável.

ER: —Não sabemos por que ela está instável.

HC: Não foi por isso que você pediu aquele estudo? Qual era o nome dela, Elbourne? Foi em cima do que: em animais ou humanos?

ER: Estou de olho nela também. Fora a... “crise” da Dra. Elbourne, ela não está significantemente pior que Sally. Parece que delegar a exposição aos nós górdios lógicos leva bem longe na diminuição dos sintomas.

HC: Ela me pareceu sensível demais. Não sei nem se abandonar o projeto foi atípico da parte da Rainha dos Ratos.

ER: Eram camundongos. Não consegue dar conta de uma ponta solta?

HC: Não começa, Roberts. Eu não ficaria dando informações a elementos tão instáveis por aí, se dependesse de mim. Pare de fazer mais Sally Grissoms. Você e Whickman não param de deixar suas vidas pessoais guiarem as grandes decisões.

ER: Vamos mesmo precisar ter essa discussão de novo?

HC: O preciso fazer para lhe convencer de que ela é uma ameaça? Já colocou nossa operação em risco antes. E então, trouxe uma raposa até o galinheiro. Disseram que Sharma disse a ela que iam “democratizar” a viagem no tempo! Ela não tinha ideia do que ele estava tentando fazer. 

ER: Eu entendo. Você acha que não, Hank, mas entendo. Precisamos dela. Ainda é a maior especialista em física de campo âncora que jamais teremos, mas está instável demais para ser útil agora.

HC: Então?

ER: Então… veja os resultados do estudo de Elbourne. Distanciar-se pode ajudar Sally a se estabilizar. Dê a ela algum tempo para colocar a cabeça no lugar. Deixe-a começar uma fazenda ou algo do tipo, e se afastar. Deixe-a encontrar a vida mais recompensadora que puder sem nós. E, eventualmente... tédio e curiosidade a trarão de volta. Pronta e disposta.

HC: … Isso é meio pesado para você.

ER: Talvez. Talvez não.

[gravador de fita desliga


ars PARADOXICA é criado por Daniel Manning e Mischa Stanton. 
Episódio 15: Borboleta características -

Kristen DiMercurio (Sally Grissom)
Katie Speed (Esther Roberts)
Dan Anderson (Hank Cornish)

Lauren Shippen (Maggie Elbourne)
Richard Penner (Dr. Fitzgerald)

com agradecimentos especiais a Isabel Atkinson

Ajuda de produção de Danielle Shemaiah e Andy Goddard. Música original de Mischa Stanton e Eno Freedman-Brodmann.

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