04: Bala

ESCRITO POR DANIEL MANNING
PRODUZIDO POR MISCHA STANTON
TRADUZIDO POR JÚLIA OLIVEIRA
[EN]

[gravador de fita liga]

SALLY GRISSOM (SG): Seria de se pensar que dois anos vivendo em Polvo teriam me deixado casca-grossa. Que nada mais poderia me surpreender. Deus, ainda estou com dificuldade de juntar tudo na minha mente. Acho melhor começar do começo. Uma das bobinas supercondutoras tinha rachado durante um teste de ciclo de energia. Roberts e Wyatt estavam ambos fora por motivos pessoais, então convoquei Barlowe pro meu time para termos mais um par de mãos. Estávamos trocando a bobina e Barlowe estava— merda. não fiz a introdução de sempre, fiz? Diário de Sally Grissom, 21 de setembro de 1945. Seria de se pensar que…   

[rádio sintonizando]

SG: —Então Donovan vem e me pergunta: “Guitarras me dão dor de cabeça. Você não fica surda com toda aquela balbúrdia?” Mas não é sobre preservar a audição, cara, é sobre sentir a música– me passa esses alicates, por favor?

QUENTIN BARLOWE (QB):  OK. Pode me mostrar o que está fazendo? Sei que é assim que você organiza–

SG: A-hã, só– chega um pouco pra trás.

QB: Desculpa.

SG: Valeu. Daí, eu falo pra ele que é sobre deixar a música tomar conta da sua mente, liberar suas emoções, deixar o animal dentro de você tomar conta—

[distorção estática, bala atravessa o tempo, Quentin cai no chão]

—o que ele achou completamente ridículo, acho que ficou quase ofendido. “Autocontrole é uma virtude”, ele disse, “que todos devemos almejar”. Aquele cara dá uma afrouxada alguma hora? Porque ‘né, vamos lá. Ei, Barlowe, você lembra a quantos graus ajustamos a resposta derivada? Barlowe? Ah, ‘pera, lembrei. Foi a 53,7 graus. Como pude esquecer quanto é oito vezes a raiz quadrada de 45? Mas, continuando, sei que somos uma comunidade científica, que somos todos dedicados à lógica e ao conhecimento, mas todo mundo tem que se soltar de vez em quando, certo? … Certo? Barlowe? Ei, está tudo be— AI!

[Sally bate a cabeça na Timepiece]

SG: Depois de a minha visão clarear, chamei os médicos, mas o Barlowe já tinha partido quando chegaram. Mais importante, minha equipe tinha perdido outro membro, a Timepiece ainda estava quebrada e, aparentemente, ela mata pessoas agora. Ótimo. Foi algo que eu fiz com a máquina? Eu não conseguiria me perdoar se movi uma mola que acabou acertando ele, ou desencadeei uma função raio da morte anteriormente desconhecida. Sei lá, inventar coisas acidentalmente tende a não dar certo pra mim.

[rádio sintonizando]

CHET WHICKMAN (CW): E você não viu nem ouviu ninguém mais entrar?

SG: Não, senhor. Minha cabeça estava debaixo da Timepiece.

CW: Então não viu o golpe mortal de Quentin sendo infligido.

SG: Não vi o– quê? Não.

CW: Por que não me conta o que viu, então?

SG: Não sei, estávamos trabalhando no protótipo, olhei pra cima e ele estava no chão, sangrando.

CW: E há quanto tempo Quentin estava trabalhando com você?

SG: Hoje foi o primeiro dia. Roberts está em Nova York com a mãe, e Wyatt foi visitar uma indústria de transformação de um dos materiais que precisamos. Preenchi a papelada duas semanas atrás. Você deve ter visto.

CW: E, claro, você não atirou nele, certo?

SG: Não, é claro que eu não… ‘pera aí– atirar nele?

CW: Nem acidentalmente?

SG: Não, eu– atirar nele? Estávamos aqui consertando a máquina, todas as portas estavam fechadas! Nem sequer temos uma arma aqui! Como ele poderia ter levado um tiro?

CW: É tudo que estou tentando descobrir, Sally. Então me diga você. Você estava lá.

SG: Isso foi tudo que aconteceu. Virei pra ver ele, bati minha cabeça e fiquei desacordada até quando chamei os médicos. Barlowe levou mesmo um tiro? Achei que tinha sido acertado por uma peça que voou da máquina ou algo do tipo.

[Chet abre um arquivo]

CW: Nosso legista tirou uma quarenta e cinco direto do peito de Quentin. Ele disse que foi atirada de uma 1911 comum.

SG: Uma pistola? Não tinha ninguém perto o bastante pra atirar nele além de mim. Diabos, não tinha mais ninguém aqui além de… oh.

CW: Entendeu por que estou lhe fazendo essas perguntas?

SG: Eu não atirei nele. ‘Pera aí. Isso não é engraçado. Você sabe que não atirei nele.

CW: Então a única outra explicação em que consigo pensar é uma bala mágica.

SG: Chet, me diz que sabe que não atirei nele.

CW: O corpo de um dos nossos no necrotério, e não faço nem ideia do que falar para a esposa dele.

SG: Barlowe era casado?

CW: Sim, com a June? Há uns dois anos?

SG: Oh, eu não sabia.

CW: Você encontrou com eles. Várias vezes. Nós dois já fomos a festas em que os dois estavam juntos.

SG: Oh… sim, fomos mesmo.

CW: Você tem algo que eu possa dizer para ela?

SG: Tipo o quê?

CW: Não sei. Uma explicação perfeitamente plausível para tudo isso.

SG: “Perfeitamente” não é como as coisas funcionam aqui. Você sabe disso.

CW: Então outra coisa. Qualquer coisa.

SG: Eu… eu não tenho nada a dizer. Mas vou descobrir o que aconteceu.

[rádio sintonizando]

SG: Diário de Sally Grissom, domingo, 16 de setembro de 1945. Acabei de voltar do funeral de Quentin Barlowe. Foi… solene não é bem a palavra certa. Quer dizer, em termos de reuniões sociais, funerais são o total oposto de, digamos, partidas de futebol. Mas esse foi… foi só… estranho? Veja bem, nenhum de nós conhecia o Barlowe bem de verdade. Nem Partridge tinha muito a dizer sobre o próprio assistente de laboratório.

[rádio sintonizando; ao ar livre]

ANTHONY PARTRIDGE: Trabalhei com Quentin por quase um ano. Ele… era um homem reservado. Silencioso. Mas sempre dedicado. A habilidade de manter registros dele era fantástica, nunca duvidei da capacidade dele de fazer… ciência. Ele me dava a impressão de ter algo sempre passando pela cabeça. Não sei o que achava que estávamos fazendo aqui. Mas continuou fazendo, então devia acreditar no nosso trabalho.

PADRE: Obrigado, Dr. Partridge. Alguém mais gostaria de dizer alguma coisa?

ESTHER ROBERTS: [ao longe] Eu. [ anda em direção ao microfone] Quentin era um homem gentil. Sempre cortês. Sempre apenas querendo não se meter na vida de ninguém. Queria que ele tivesse se metido mais. Queria tê-lo visto mais.  

PADRE: Isso foi muito amável, Dra. Roberts, obrigado. Alguém mais?

SG: Hm… Eu fui a última pessoa ver o Bar… Quentin vivo. Ele estava ajudando no meu laboratório. Ele… eu não conhecia ele muito bem. Ele parecia… intrometido. No trabalho, aquele dia, ficou o tempo todo colado em mim. Acho que isso indica que era… um dedicado buscador do conhecimento? Eu não… Desculpa, eu achava ele incômodo e um pouquinho medonho. Ele estava tão perto de mim que me surpreendi de ter sido ele a levar o tiro e não eu. Sinto muito pela sua perda, June.

PADRE: Bom… Obrigado por falar de coração, Dra. Grissom. Tenho certeza de que todos apreciamos. Acredito que a Sra. Barlowe tenha algumas palavras a nos dizer agora?

[June sai andando; multidão arqueja]

PADRE: Sra. Barlowe?

[rádio sintonizando]

SG: Foi um desastre. Não sei o que queriam que eu dissesse. Talvez que sempre apreciei o fato de que Barlowe nunca roubou meu lanche? Ou que a morte dele foi especialmente interessante, de um ponto de vista científico?

… Uou, cara, morrer foi a coisa mais interessante que Quentin Barlowe fez? Isso é pesado.

Mas tenho certeza de que ele tinha família, ou amigos, ou algo do tipo, certo? Todo mundo tem uma história. Todo mundo é uma pessoa. Mas, durante todo o discurso, June Barlowe só me encarou com uma raiva fervente e superfocada. Encarou até as profundezas da minha alma.

Você sabe como é, quando está em uma festa, tentando contar a alguém sobre um tio idiota, gritando por causa do barulho, quando Smash Mouth para de tocar abruptamente, bem na hora em que você ‘tá dizendo uma palavra que soa como um palavrão particularmente ofensivo fora de contexto. E aí, todo mundo para o que está fazendo, vira na sua direção e te encara. Tudo que você poderia dizer depois disso só pioraria sua situação, então você fica lá, feito boba, sem ter o que fazer- repreendida, morrendo de medo de dizer mais qualquer coisa- e ninguém disse nada nos últimos 25 segundos e a saída é do outro lado da sala, então não tem escapatória? Foi esse tipo de olhar que June me deu.

Depois da performance do meu show de uma mulher só– “Sally Destrói o Funeral”– escapuli pro meu assento entre as fileiras de cientistas vestidos de preto. Pensei que a punição de June Barlowe pra mim tinha acabado, mas, conforme saíamos, avistei ela perto das casas e ela ficou me encarando durante todo o trajeto. Saí de lá o mais rápido que pude e fui correndo pra casa. Sei que June não ia me machucar, mas há uma possibilidade de eu ter ficado escondida num canto do meu quarto, enrolada em cobertores por uma hora ou por aí… só pra ter certeza.

Quer saber? Vou provar pra eles. Vou descobrir como ele morreu e mostrar que não foi culpa minha. Só preciso construir… alguma coisa. Alguma coisa que mostre o que realmente aconteceu.

[rádio sintonizando]

SG: Dra. Sally Grissom, diário de experiências, são hm, 2:57 da manhã, já é quinta, merda. Quinta, 20 de setembro de 1945. Esse é o primeiro teste do Projetor de Atividade de Táquios— o PAT. Fiz ele de um nó de matriz de portas, um osciloscópio e um tubo de raios catódicos que peguei emprestados de outro projeto. Bom, ‘tou dizendo que peguei emprestado… me pergunto se notaram. Vou dizer a eles… sei lá. Vou dizer a eles que foi pela ciência. Então, o que eu tenho aqui é um sistema que detecta a atividade dos táquions…

[distorção estática]

SG: … amplifica essa luz e reproduz ela nessa tela. Na prática, te permite ver o passado. Pelo menos acho que permite. Passei as últimas 67 horas mergulhada em teoria e inalando um monte de vapores de solda, então é hora de colocar meus óculos de cientista e testar essa merda. Espero que funcione. Eu odiaria acabar de volta na Filadélfia.

[PAT liga]

SG: Certo, ainda aqui, ainda inteira, isso é bom sinal. A imagem está focando. E… uou. Aqui está, programei ele pra dez minutos atrás. ‘Tá passando uma imagem surpreendentemente vívida de mim, mexendo com umas ferramentas do banco. Estranho. Mas também INCRIVELMENTE da hora.

[carrinho passa]

SG: Então, essa coisa é bloqueada por localização, porque usa os modelos de estabilização da Timepiece. Custou uma matemática das mais pretensiosas pra sincronizar a coisa toda com o movimento planetário, e eu não queria passar os próximos meses calculando de novo, então meio que só… enfiei lá dentro. Literalmente. Meu ponto é, só dá pra ver onde o carrinho está, e ele está ligado à Timepiece, porque inibidores de campo de Higgs não crescem em árvores.

Ok, certo.. estou convencida. PAT: sucesso total. Agora tenho que trazer o Whickman aqui—

[fita acelera]

CW: Espera um minuto, Doutora. Está me dizendo que construiu uma janela no tempo… com uma televisão?

SG: Do meu ponto de vista, se você vai olhar pro passado, é bom pelo menos fazer isso com um pouco de estilo. Tive que abrir a Timepiece e ligar essa coisa lá, então é melhor tomar cuida—

[Chet liga a tela]

SG: Ei, olha aí, ‘tá ligado.

CW: Está mostrando o que está na nossa frente. Mas é o passado?

SG: 7:27. Foi quando cheguei aqui hoje de manhã. Dá pra me ver abrindo a porta logo ali.

CW: Eu estaria na minha cozinha, tomando café… Isso vai mudar tudo. Sobre sistemas de segurança, sobre comunicação. Tudo.

SG: Podemos manter isso em segredo? Pelo menos por um tempinho. Me dê um tempo pra me assegurar de que isso não seria desastroso demais nas mãos erradas. Ou nas mãos certas. Nas mãos de qualquer pessoa.

CW: Isso é quebrar cerca de meia dúzia de regras. Você precisa mesmo parar de me pedir para guardar todos os seus segredos.

SG: Bom, você devia parar de estar em uma posição pra ser secre- tado.

CW: Secretado? Que nojo, Sally.

SG: [sarcástica] Muito engraçado.

CW: Se essa coisa faz mesmo o que você está dizendo, sistemas de segurança serão apenas uma memória distante. Quem precisa de uma transmissão ao vivo quando pode simplesmente assistir o que aconteceu?

SG: Bom, ele roteia as respostas dos táquions pela Timepiece, então precisa estar ao alcance de um cabo. E, além disso, não tenho certeza de que estou OK com o governo de olho em tudo que já aconteceu depois de 1943.

CW: Eu não me importo. Não tenho nada a esconder.

SG: É o que sempre dizem. Ninguém tem nada a esconder até o Grande Irmão ter uma máquina do tempo.

CW: O Grande o quê?

SG: Meu Deus, vocês ainda não leram 1984? Quem são vocês, homens da caverna?

CW: Desculpa, acho que perdi alguma coisa.

SG: Tem um– só… se você vir um autor chamado Orwell na próxima vez que for a uma livraria, compre um livro dele. E acham que eu sou presciente… Quer ver o que aconteceu com Barlowe ou não?

CW: Estou ansioso para ver sua engenhoca fazer a mágica dela.

SG: E aí você vai me tirar da lista de suspeitos da morte do Barlowe.

CW: [ri] Doutora, você não pensou mesmo que estava sendo investigada sobre isso, pensou?

SG: Não, eu… ‘pera aí, o quê?

CW: Eu soube que você não tinha matado o Barlowe no momento em que me falou que não tinha. Não é burra o bastante para mentir daquele jeito de cara. E, além disso, se realmente suspeitássemos de você… não sei se essa conversa seria tão amigável. Está me dizendo que fez tudo isso porque achou que era suspeita de assassinato?

SG: Bom… talvez um pouquinho. Um tiquinho só. Passei três noites seguidas em claro. Nada demais.

CW: Só me leve até a cena do crime e, depois, devia ir dormir um sono.

[Sally ajusta o PAT para o tempo certo]

SG: Certo, ‘tou ajustando ele pra última sexta. Que horas eram? Segundo as informações disponíveis, sei que ‘tava no fim da manhã, mas eu não ‘tava checando meu relógio quando Barlowe caiu.

CW: Baseado no seu testemunho, evidência médica e nossa própria investigação, concluímos que aconteceu aproximadamente às 11:34. Nossa, o que eu não daria para ter uma filmagem de qualquer lugar, a qualquer hora. E eu achando que um circuito fechado de TV era chique. Essa coisa transmite som também?

SG: Whickman, a imagem já é o bastante. Sonhe um pouco menos.

CW: Ei, sou só um segurança. O que eu saberia das suas engenhocas científicas?

[ajustando o PAT]

SG: OK, estou começando de depois do evento e indo de trás pra frente– ali estão os paramédicos indo socorrer o corpo do Barlowe no laboratório, descendo ele e indo embora, ali estou eu ligando pra eles não voltaram, gritando e daí voltando a trabalhar, a poça de sangue volta pro Barlowe–

CW: Já entendi, Doutora. Você está indo de trás para frente. Pule para o fim.

SG: OK, aqui está. Avançando um segundo por quadro, Barlowe está de pé, Barlowe está de pé, e está caindo no chão.

CW: Espero não ter esse olhar na minha cara quando morrer.

SG: … Não seja atingido por uma bala vinda do nada?

CW: Vou colocar na minha lista. Dá para conseguir uma imagem mais precisa?

SG: Vou desacelerar pra um décimo de segundo por quadro.  

[PAT estala como se tivesse mudando slides]

CW: Espera— ali. É a bala. Vire o carrinho de lado. De onde ela foi atirada?

[carrinho andando]

SG: Parece que… do nada.

CW: Continue voltando.

[clica clica]

SG: E aí… ela desaparece.

CW: Como isso sequer pode acontecer?

SG: Vou ajustar o mais precisamente que consigo com esse protótipo. Vamos chegar aos microssegundos.

[só um monte de cliques, você entende a ideia]

SG: ‘Tá lá, e aí não ‘tá. [clica] Lá, [clica] e aí não.

CW: Mas de onde ela veio? Não creio que balas simplesmente se materializem do nada. Não ainda, pelo menos. Sua máquina fez isso?

SG: Provavelmente.

CW: Mas a bala chega a velocidade máxima! Alguém tem que tê-la atirado, certo?

SG: Sei lá. Minha caixa só vê o passado. Se a bala veio mesmo de uma ativação da Timepiece, tem que ter sido atirada do futuro relativo à última sexta. Além disso, a morte de Barlowe causou mudanças na linha do tempo… não tem jeito de saber de onde a bala original veio, ou que circunstâncias levaram ela a ser atirada.

CW: Está dizendo que não faz ideia?

SG: Até onde os princípios científicos fantasticamente teóricos com que tenho me virado nos últimos dois anos vão, sim, quer dizer, sabemos onde, porque a Timepiece não move nada no espaço, mas isso é tudo que posso te dizer. Todo o resto é dedução. Estilo detetive temporal.

CW: Estilo o quê?

SG: Bom, sei que não depende de mim, mas acho que devíamos tentar impedir quem quer que vai atirar a bala no Barlowe de atirar ela. Se a pessoa sequer quer atirar nele ainda.

CW: Mas não dá pra saber quem foi antes de a cena do crime acontecer.

SG: Certamente é um caso mais difícil que seu assassinato habitual.

CW: Então… é isso? Vamos para casa e esperamos que ninguém cometa um assassinato que não possamos resolver?

SG: Infelizmente.

CW: Isso está errado… parece que estamos desistindo. Odeio isso.

SG: Além disso, podíamos revistar todo o pessoal que fica perto do local de teste, ver se estão armados.

CW: O protocolo exige que toda a equipe de segurança carregue uma pistola de serviço enquanto estiver no trabalho. Estou armado agora.

SG: Você não ‘tá quebrando meia dúzia de regras só de estar aqui?

CW: Sim, mas certamente não serei eu a atirar no Dr. Barlowe.

SG: Nenhuma arma significa que Barlowe não pode levar o tiro.

CW: Algo que já aconteceu.

SG: Bom, se você insiste em olhar pra coisa tão linearmente…

CW: Está dizendo que se banirmos armas vamos o quê? Trazê-lo de volta à vida?

SG: Nem a pau, mas alguma outra versão do Barlowe ainda pode sobreviver.

CW: Mas aí, é claro, você nunca vai construir sua TV-temporal como consequência.

SG: ‘Tá vendo como essa linha de pensamento rapidinho sai do controle? Olha, ou o Barlowe leva o tiro, ou não leva. De qualquer forma, da nossa perspectiva, ele ‘tá morto. Minha solução mantém ele vivo em algum lugar no espaço-tempo. Sem armas, sem balas, ninguém leva tiro.

CW: Qual é a causa, e qual é a consequência?

SG: Meu problema é que fico encarando elas na ordem errada.

CW: Você é uma mulher e tanto com quem se trabalhar, Doutora. Estou tonto.

SG: Bem-vindo ao clube.

[rádio sintonizando]

SG: Então, descobrimos que não fazíamos ideia de quem tinha atirado no Barlowe. A bala veio do nada, então tudo que podíamos dizer é que vinha do futuro. Ah, é mesmo! Não se esqueça, Sally: Nova ideia: Detetive temporal. Bom, daí, eu ‘tava sozinha no laboratório tinha algumas horas, depois de o Whickman sair, porque ainda tinha perguntas que precisavam ser respondidas.  

[rádio sintonizando; PAT ligado, carrinho andando]

SG: E ali estou eu, debaixo da Timepiece, e Barlowe está bem aqui, então o tiro veio do… Ei, que isso—

[porta do galpão abre e fecha]

SG: Olá?

[passos]

SG: Sabe que posso te ouvir, ‘né? Não sou muito fã desse joguinho todo de “entrada dramática”.

JUNE BARLOWE (JB): Está na hora de termos uma conversa, Sally.

SG: O qu- AI!

[Sally acerta a cabeça na Timepiece de novo. Comédia. ]

SG: June Barlowe! Eu- merda, toda vez! Quem te deixou entrar aqui?

JB: Eu mesma.

SG: Eu, uh, assumo que essa não é uma visita social?

JB: Posso lhe dizer o que apareceu na minha porta hoje de manhã?

SG: Leite? Um velho primo? Um cachorro perdido? Alguma quarta coisa antes de você inevitavelmente me contar de qualquer forma?

JB: Uma carta e um pacote. A carta, direto da mesa do Diretor, dizia que eu tinha 48 horas para desocupar minha casa aqui em Polvo. Sem o Quentin, evidentemente não tenho o direito de continuar vivendo aqui. Ninguém me disse uma palavra diretamente. A campainha tocou, e foi isso. O pacote continha chaves para a minha nova casa, trezentos dólares e todos os papéis que jamais poderia precisar como preparação para minha nova vida.

SG: Sua nova vida?

JB: Estão me fazendo assumir uma nova identidade. É para a minha “proteção”. Ninguém realmente sai de Polvo. Levam indenização a sério aqui. Agora sou Alice Hayworth de Carlsbad, Novo México. Já ouviu falar de Carlsbad, Sally?

SG: Não… não posso dizer que já.

JB: Eu também não!  Tenho certeza de que é uma graça de cidade. Alice Hayworth ama lá, mas não estou certa sobre mim!

SG: Não sei onde você quer chegar com isso. O que isso tem a ver comigo?

JB: Você? Você matou meu marido! Você matou o homem com quem dividi os dois anos mais felizes da minha vida, e agora sua operação está me tomando meu próprio nome!

SG: OK, ‘pera aí, só um instante. Primeiro, não matei seu marido, nem de longe. Segundo, por favor, nunca pense que a ADRA é “minha operação”.

JB: Não minta para mim, Sally, por favor. Não tinha mais ninguém na sala. Você atirou no meu marido a sangue frio. E agora estou sendo mandada para longe para acobertar seus crimes.

SG: Não! Não foi isso que aconteceu!

JB: Não foi? Então o que está acontecendo, Sally? O quê, você estava dormindo com ele?

SG: Uou! Nem pensar. June, você precisa se acalmar.

JB: O que você está fazendo, Sally? Acha que sou idiota? Sou só mais uma qualquer para você.

SG: Não, você… você é a June! Você é parte da cidade. Você…

JB: Diga qualquer coisa. Diga uma coisa que saiba sobre mim. Diabos, diga uma coisa sobre o Quentin.

SG: Bom, você fez ótimos canapés de cogumelo na festa de quatro de julho–

JB: Cale sua merda de boca agora. É isso que pensa de mim? Você me define pela comida que faço? Eu nem cozinho muito. Você acha que sou uma dona de casa dispensável! Não liga para pessoas como eu!

SG: June, eu não penso assim! Sinto muito mesmo pelo que houve com o Quentin. Mas eu não estava dormindo com ele. E certamente não matei ele.

JB: Pode mentir o quanto quiser, Sally. Não importa o que você diz, porque vai consertar tudo.

SG: Tudo bem! Posso falar com o Donovan. Tenho certeza de que consigo acertar as coisas com ele. Você não vai precisa mudar sua identidade, pode ficar em Polvo, perto do… perto do seu marido.

JB: Não, vamos consertar isso. Eu e você. Aqui e agora. Com sua máquina do tempo.

SG: [balbucia] Não, por que você– Isso não é– Do que você ‘tá falando–

JB: Você acha mesmo que sou idiota, não acha? Sei no que o Quentin estava trabalhando. Eu era casada com ele. Sei o que essa coisa faz. Vocês a chamam de Timepiece, para mim é uma imitação barata do Wells.

SG: ‘Pera aí, isso não é justo. A máquina dele ia pro outro lado.

JB: Eles voltaram no fim, OK? Só fique quieta! Você vai pegar essa máquina, vai voltar para a semana passada e vai consertar tudo o que quebrou.

SG: Não posso só fazer um passeiozinho pra semana passada. A Timepiece mal funciona. Deus, estava quebrada quando Quentin…

JB: Quando Quentin o quê?

SG: Não sei se um tecido vivo sobreviveria à viagem com a máquina como está agora. E mesmo se eu voltasse, não sei como pararia o que aconteceu.

JB: Bom, quando estiver lá, você me conta.

SG: É isso que estou dizendo! Eu estava lá! Quem sabe o que aconteceria se tivesse duas de mim no mesmo lugar, ao mesmo tempo? Aqui, olha!

[Sally ajusta o PAT para a morte de Quentin, carrinho anda]

SG: Aqui, ali está o seu marido, logo antes de morrer. Essa máquina mostra o passado. Ele está bem ali, e eu estou bem ali, trabalhando debaixo do protótipo. Como eu poderia ter atirado nele?

JB: Como isso… Mesmo se não atirou, você é responsável por consertar tudo.

SG: Sinto muito, June, mas não posso fazer isso.

JB: Não pode, ou não vai?

SG: Nenhum? Os dois?

JB: Se coerção não funciona, talvez ameaças o façam.

[June tira uma arma da bolsa e a engatilha]

SG: June, não, Por favor, guarde isso. Você vai—

JB: Você vai ligar a máquina, vai nos levar de volta para semana passada e nós duas vamos salvar meu marido. Ou eu posso lhe matar aqui e agora. A escolha é sua.

SG: Vamos sair de perto da máquina, largar a arma e conversar sobre isso um instante. Você não sabe o que está fazendo.

JB: Juro por Deus, ou você nos manda para lá agora ou meto uma bala no seu peito!

SG: Escuta– o que aconteceu, aconteceu. Como você pode viver quando o passado é tão incerto quanto o futuro?! Não estou mais no controle da vida e da morte que você–

JB: Mas você está! Você construiu essa coisa que promete consertar tudo que um dia foi quebrado, e só a deixa parada? Com medo demais para fazer qualquer coisa com esse poder, porque teme que pode acabar se arrependendo? Você tem a causalidade na palma das suas mãos e fica esbanjando seu domínio sobre ela a cada segundo que passa com suas teorias e anotações.

SG: Uh, acho que você quis dizer “desperdiçando”.

JB: POR QUE VOCÊ NÃO CONSEGUE LEVAR ISSO A SÉRIO?!

[June atira; bala viaja no tempo]

SG: … Oh não. Ah, cara, vou passar mal.

JB: Eu atirei em você. Acabei de atirar em você. Para onde a bala foi?

SG: Olha o monitor.

[Sally avança o PAT]

JB: O quê? Mas isso não… não é…

[Chet entra; June desaba no chão, chorando]

JB: Não posso… Não posso…

CW: Sally?

SG: Chegou uns segundos atrasado, Oficial Whickman. Ou bem na hora, dependendo do seu ponto de vista.

CW: O que aconteceu aqui?

SG: Lembra mais cedo, quando estávamos falando sobre causas e consequências?

CW: Como assim?

SG: Foi ela. Ela atirou no próprio marido.

CW: O quê?

[Chet pega a arma]

CW: Como ela sequer conseguiu isso?

SG: Ela só queria o marido de volta. E agora é a razão de ele ter falecido.

CW: É arrogância.

SG: Não, arrogância é para os reis. O resto de nós só ganha ironia cruel.

[rádio sintonizando]

SG: [suspiro] É um equívoco comum pensar que o tempo desacelera em um momento de estresse extremo. É verdade que sua amígdala gera uma resposta no seu hipotálamo, causando uma descarga de adrenalina da sua glândula adrenal, mas isso já foi provado ser uma ilusão. Você lembra do evento mais devagar por suas memórias nebulosas dele. Mas eu assisti à arma de June Barlowe atirando a bala que eu tinha passado dias procurando. Me lembro claramente do vagaroso rodar do tambor, no instante em que explosão da pólvora mandava a bala direto pra minha cara. E, por um breve momento, esqueci da Timepiece, de Quentin Barlowe e Polvo e 1945. E fiquei com medo. Quando o inibidor de campo de Higgs que o PAT usa puxava a bala pra semana passada, o medo se foi e se tornou um vazio do meu estômago, me deixando sem escolha senão assistir a tragédia que eu achei que estava tentando prevenir, não provar. Mas salvou minha vida. Não consigo acreditar que é a primeira vez que alguém tenta me matar por dar uma de espertalhona.

Segundo o que tudo indica, é um loop agora. Quentin é morto pela bala de June, eu invento o PAT, estabelecendo as condições pra que a viúva de luto Barlowe venha e cause sua própria ruína. Mas, depois de tudo isso, ainda tem uma coisa sobre a qual não tenho certeza. Quem atirou a primeira bala? Sei que a June torna a situação recursiva, mas a primeira bala não tinha razão nenhuma pra estar ali. Tinha uma linha do tempo em que Barlowe não tinha morrido semana passada, e a bala veio de outro lugar. De outro tempo, desculpa. Mas acho que nunca saberemos. Não acho que teremos acesso a essa versão. Isso só vai continuar me incomodando pra sempre.

[rádio sintonizando; Timepiece funcionando]

CW: Com licença, Dr. Barlowe?

QB: Oficial Whickman, como posso ajudá-lo?

CW: Sinto muito, Quentin, mas vou precisar lhe fazer algumas perguntas.

QB: À vontade.

CW: Bom, elas são um pouco pessoais.

QB: Como assim, pessoais?

CW: Dr. Barlowe, qual era o nome da primeira garota que você beijou?

QB: June. Você conhece a June.

CW: Não, eu não quis– bom, sabe, estou falando de coisa de primeira série. Só o nome.

QB: Não sei o que você está insinuando, mas nunca fiz nada com ninguém além dela.

CW: Tudo bem. Só preciso fazer algumas perguntas.

QB: Se quiser uma lista detalhada de cada garota que acompanhei até a casa dela—

CW: Quando você era criança, qual colega você odiava mais na escola?

QB: Qual colega eu o quê?

CW: Você sabe, o garoto da sua sala que você odiava mais que tudo no mundo. Não suportava a cara dele. O motivo do ressentimento já foi esquecido há muito tempo– ele dedurou você, ou talvez você tenha o dedurado; não importa. Tudo que ele dizia e fazia era vil…

QB: Está me perguntando sobre minhas rixas de infância?

CW: Quem foi para você? Tudo bem, todo mundo teve uma. Só desembuche. Não precisa hesitar—

QB: Darren Little. Nossa, não penso no quanto odeio aquele garoto há décadas. Ele era da minha sala na, quando foi, terceira série? Era um garoto terrível. Sempre me derrubava quando eu passava perto da carteira dele. Jesus, estou mesmo desejando mal a um garoto de nove anos…

CW: E que escola você frequentava quando conheceu o Darren? Não deve ser muito difícil. Deve lembrar o nome da sua escola de ensino fundamental, certo?

QB: Uh, deixe-me pensar, o nome dela era, hm…

CW: Imaginei. Quando fui designado para Polvo, pensei que era hora de atualizar a inspeção de segurança de todo mundo. E aí, cheguei em você.

QB: Olha, não sei onde você quer chegar–

CW: Quentin Barlowe não existe. Tenho que admitir, fizeram um trabalho de primeira. Você tem formulários fiscais, históricos escolares, seu currículo é tão detalhado que chega a ser suspeito. Mas papéis não fazem uma pessoa; você não existia antes de 1943.

QB: Eu informei vocês quando consegui o emprego– houve um incêndio, a casa em que morei na infância–

CW: Oh sim, eu me assegurei de checar isso. Não houve um único incêndio que se encaixasse na descrição que você deu na área de Evanston, Illinois. Fui até as escolas que você clama ter frequentado. Nenhum registro de Quentin Barlowe. Até rastreei todo Barlowe e todo Quentin que pude encontrar, só para ter certeza. Você subestimou meu rigor. Você subestimou nosso rigor. Sua esposa fazia parte da farsa também?

QB: Não, June é real! Whickman, precisa prestar muita atenção em mim. Não é o que parece.

CW: Parece-me que você é um espião.

[Chet ergue a arma dele]

QB: Ei, ei, não há necessidade nenhuma de tomar medidas drásticas, OK?

CW: Para quem você trabalha? Os japas? Os Krauts? Ou os russos já se viraram contra nós?

QB: Não sou um deles! Trabalho para vocês! Oficial Whickman, por favor, tem que acreditar em mim! Certo, eu menti sobre o meu passado. Sobre de onde vim. Mas juro por Deus e tudo que é sagrado que não estou trabalhando para mais ninguém. Sou um homem da ADRA, total e inteiramente, estou do lado de vocês!

CW: Eu… Eu acredito em você.

QB: … Você acredita? Sério?

CW: Você soa sincero. Tenho uma boa intuição para esse tipo de coisa.

QB: Oh, obrigado! Obrigado!

CW: Mas também tenho ordens.

[Chet atira duas vezes; um tiro acerta Quentin, outro atravessa o tempo; Quentin grunhe, cai no chão]

CW: Uma de duas balas? A essa distância? Está ficando enferrujado, Chet.

[gravador de fita desliga]


ars PARADOXICA é criado por Daniel Manning e Mischa Stanton.
Episódio 04: Bala características -

Kristen DiMercurio (Sally Grissom)
Reyn Beeler (Chet Whickman)
Robin Gabrielli (Anthony Partridge)
Katie Speed (Esther Roberts)
Lee Satterwhite (Quentin Barlowe)
Hannah Trobaugh (June Barlowe)
Geoff Pictor (vozes adicionais)
Com agradecimentos especiais a Isabel Atkinson

Música original de Mischa Stanton.

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